A experiência (tanto nacional
como internacional) de situações em que um abundante número de processos com
origem na entrada em vigor de um preceito que tenha afetado do mesmo modo
elevado número de pessoas fez com que em Portugal se sentisse a necessidade de
promover a criação de um regime que regulasse e, acima de tudo, resolvesse
estas situações. A necessidade de uma rápida, e segura, resolução dos litígios submetidos
à apreciação dos Tribunais administrativos falou assim mais alto e foi criada a
figura (e o regime) dos processos em massa.
Este regime inovador (em Portugal
tratado no artigo 48º do CPTA) inspirou-se no direito espanhol, mais
concretamente na Ley de la Jurisdicción
Contencioso-Administrativa (Lei 29/1998, de 1 de Julho) e visa, como já se
compreendeu, promover a redução do número de litígios a apreciar pelos
tribunais. Não se fica, no entanto, apenas por esta intenção. Pretende-se ainda
que exista uma uniformização das decisões que (relativamente a questões
idênticas) são proferidas pela justiça administrativa, algo que somente
ocorrerá se as partes nos processos suspensos aceitarem a decisão proferida no
processo ou processos selecionados e não fizerem uso da faculdade de requerer a
continuação do processo que lhes diz respeito (processo que será explicado
infra).
Com a intenção de fortalecer esta
ideia de uniformização da jurisprudência exige-se no nº4 do artigo 48º que
todos os juízes do tribunal ou da secção intervenham no julgamento do(s)
processo(s) selecionado(s). Pretende-se assim assegurar que a decisão que venha
a ser proferida seja assumida por todos os juízes reduzindo a possibilidade de
qualquer um desses juízes vir a decidir em sentido oposto em processos
suspensos (em que se requeira a continuação do mesmo - art. 48º nº 5 al. c)).
Cabe então explicitar os
requisitos para se poder qualificar como um caso de massificação processual.
Requisitos esses que se encontram plasmados no nº1 do artigo 48º e que abaixo
enunciarei acompanhando de uma breve explicação.
O primeiro requisito é o que
alguns autores chamam de requisito de qualificação, neste requisito fixa-se o
número mínimo de processos exigidos para se poder qualificar como sendo um caso
de processos em massa e sendo esse número mínimo o de vinte e uma pendências
(ou mais de vinte processos, dependendo da forma como se quiser explicar).
O requisito seguinte consiste no
facto de ter que ser a mesma entidade administrativa que produz o ato em
relação a todos os sujeitos processuais por ele (o ato) afetados.
A questão levantada pelo
Professor Wladimir Brito é saber o que se entende aqui como mesma entidade
administrativa, ao que o mesmo responde defendendo que a resposta a esta
questão só poderia ser dada pelo direito administrativo substantivo, visto que
só neste ramo do direito nos é oferecida uma definição de entidade
administrativa. Ainda assim, o Professor continua a sua linha de raciocínio
dizendo que a lei se quer referir quer às pessoas coletivas de direito público
(quer a sua natureza seja territorial, quer seja institucional), quer a todo e
qualquer ente público que tenha legalmente competência para praticar atos de
autoridade.
O terceiro requisito presente no
artigo 48º nº1 consiste na necessidade de serem (os processos) relativos à
mesma relação jurídica material. Este requisito pode ser considerado como um
requisito extra-processual. O porquê desta classificação (como
extra-processual) justifica-se pelo facto do litígio ser algo que está
necessariamente “antes e fora do processo, por pertencer ao domínio das
relações substantivas em que o conflito se consubstancia e que ao se dar ao
processo nele se assume como a causa do litígio e da relação
jurídico-processual”. No ponto de vista processual esta identidade da relação
jurídica material tem de ser procurada na causa de pedir e nunca no pedido,
pois é naquela que ela deve ser revelada.
O último, mas não menos
importante requisito consiste na suscetibilidade de serem decididos com base na
aplicação das mesmas normas a idênticas situações de facto. Escusado será dizer
que essas normas serão aquelas que o juiz entenda serem aplicáveis para a
resolução do caso, uma vez que o Juiz não está vinculado à qualificação
jurídica dos factos nem à solução de direito oferecida pelas partes (inclusive
da Administração). Cabe exclusivamente ao Juiz essa decisão.
Enumerados os requisitos e toda a
complexidade do regime em apreço, que não se afigura isento de dificuldades,
não se deve deixar de frisar que deve ser manuseado pelos tribunais com
precaução[1].
Quanto à tramitação deste tipo de
processos é a dos processos urgentes a utilizada.
“Se for reconhecido judicialmente
a observância de todos os requisitos acima referidos, o Presidente do Tribunal
“pode determinar, ouvidas as partes, que seja dado andamento a apenas um ou
alguns deles, que neste último caso são apensadas num único processo, e se
suspenda a tramitação dos demais”, reza a segunda parte do nº1 do artigo 48º.
A lei não impõe ao Juiz a
obrigação de classificar de massificação processual a situação pendencial
existente no seu Tribunal, cabendo-lhe em cada momento decidir se deve ou não
declarar como de massificação processual a existência de vários processos que
reúnam os requisitos acima referidos. Caso decida fazer tal declaração deverá:
1) Ordenar por despacho fundamentado, a audição das
partes, informando-as da pendência de mais de vinte processos que preenchem os
requisitos legais para que seja aplicada a norma do artigo 48º e convidando-as
a pronunciar-se sobre a situação, no prazo ente cinco e vinte dias, por serem estes
os prazos para a pronúncia das partes nos processos urgentes, aplicável ex vi
do artigo 48º nº4 (veja-se o artigo. 99º, 102º, 107º e 110º do Código);
2) Decorrido o prazo da pronúncia das partes, por
despacho fundamentado proferido num dos processos deverá o Juiz declarar a
situação de massificação processual e decidir nesse mesmo despacho que processo
ou processos classifica como processo(s) selecionado(s) para efeitos de
apreciação e decisão. Decidindo classificar de selecionados dois ou mais
processos, deverá o Juiz ordenar que sejam apensados ao mais antigo e que cópia
desse seu despacho seja junto a cada um dos vários processos pendentes no seu
Tribunal. Nesses despachos deverá ainda o Juiz identificar todos os processos,
para que as partes possam consultá-los, se assim entenderem;
3) Constituída a situação de massificação
processual o(s) processo(s) são instruídos de acordo com a tramitação
estabelecida para os processos urgentes, devendo, no julgamento, apreciar-se
exaustivamente todas as questões de facto e de direito.”[2]
Neste ponto da
tramitação relativo aos processos urgentes cabe fazer um parêntesis uma vez que
no artigo 48º nº 4 não é referido qual o processo urgente a que se refere e
seria importante saber-se, uma vez que, como já havia sido estudado, nos
processos urgentes temos uma tramitação específica para cada um deles. Tanto
temos a tramitação própria das impugnações do contencioso eleitoral (99º), como
uma outra própria do contencioso pré-contratual (102º), como ainda, uma outra
para as intimações (107º e 110º) e, finalmente, uma tramitação para os
processos cautelares. Nestas diferentes tramitações são estabelecidos prazos
distintos, pelo que acabamos por ficar sem saber quais os prazos a que deve o
Juiz obedecer.
O Professor Wladimir
Brito apresenta mais uma vez uma solução para este caso de pouca clareza da
lei. Diz-nos o mesmo que “tendo em atenção que a urgência desses processos em
massa é relativa e não pode ser equiparada à dos processos de contencioso
eleitoral, nem à das intimações, nas suas duas modalidades, somos de opinião
que a tramitação a seguir deverá ser a do contencioso pré-contratual, por serem
mais longos e, nessa medida, os únicos que não limitam anormalmente o âmbito da
instrução nem condicionam excessivamente apreciação dos factos e a realização
das diligências de prova necessárias para o completo apuramento da verdade.[3]”
4) Julgado o processo, se o Tribunal entender que a
mesma solução de direito pode ser aplicada aos processos suspensos deverá
previamente notificar as partes desses processos que poderão adotar uma das
seguintes atitudes, no prazo de 30 dias (art.48º nº5):
a. Desistência do seu processo - se a decisão do
processo-modelo (ou processo selecionado) tiver sido de improcedência e ele se
conformar com a decisão da sentença;
b. Requerer a extensão ao seu caso da decisão
proferida para efeitos de execução - o que significa que aceita a aplicação ao
seu caso da decisão proferida no processo selecionado;
c. Requerer a continuação do próprio processo - o
que significa que não aceita a aplicação ao seu caso da decisão proferida no
processo ou processos selecionados e prefere tentar a sua sorte no próprio
processo que intentou.
d. Recorrer da sentença, se ela tiver sido
proferida em primeira instância. Este recurso, se tiver êxito, só será
aproveitado para quem o pediu, para o efeito de lhe permitir beneficiar de uma
decisão de sentido diferente para o seu caso. Não é aproveitado pelas partes no
processo selecionado, em relação às quais se formou caso julgado.
Em relação à
alínea d) apresenta o Professor Wladimir mais uma crítica. Crítica que consiste
no carácter incompreensível desta opção jurídico-processual, uma vez que “não
se entende como é que alguém pode recorrer de uma decisão antes de esta lhe ser
aplicável, mesmo que por extensão. Antes de o autor optar pela extensão ao seu
processo da sentença proferida nos processos selecionados não há sentença no
seu processo, pelo que não pode recorrer de sentença inexistente.”[4]
No âmbito da
mesma discussão o Professor Vieira de Andrade fala numa situação especial de
recurso posterior à formação do caso julgado.
Quanto aos efeitos da pronúncia
proferida nos processos selecionados são complexos e merecem uma análise mesmo
que breve, começando por fazer um breve comentário ao texto do nº 5 do artigo
48º, mais especificamente em relação aos 30 dias, uma vez que ficamos sem saber
se o Tribunal terá de aguardar o decurso dos trinta dias para estender a
decisão aos processos suspensos ou se tal extensão é automática.
Reza o nº 5 que, entendendo o Tribunal
que a mesma solução plasmada na pronúncia pode ser aplicada aos processos
suspensos, as partes são imediatamente notificadas da sentença para que o autor
nesses processos opte por uma das quatro soluções acima transcritas. Na “visão”
do Professor Wladimir Brito a lei quer conceder ao autor a oportunidade de
tomar uma decisão e de a comunicar ao Tribunal antes de ser aplicada, por
extensão, a pronúncia judicial já proferida nos processos selecionados.
Se seguirmos este entendimento (e
mais uma vez na ótica do Professor Wladimir) torna-se contraditório admitir
que, antes de cada um dos autores dos processos suspensos se pronunciarem sobre
a opção que irão fazer, a pronúncia judicial transitada em julgado, ser
estendida aos processos suspensos.
Ora, não parece minimamente
aceitável interpretar a norma do nº 5 no sentido de a decisão judicial
transitada em julgado ser aplicável aos processos suspensos antes dos
respetivos autores tomarem posição, optando por uma das quatro possibilidades
que o mesmo artigo lhes confere. Não é aceitável aceitar que tal decisão se
considere automaticamente aplicada aos processos suspensos, antes sequer da
opção dos autores acima referida. “A não se entender assim, a opção concedida
aos autores seria inútil, qualquer que ela fosse, no momento em que era
comunicada ao Tribunal, dado que a decisão judicial já estaria estendida a
esses processos.”[5]
Exatamente pelas razões indicadas
pelo autor apresenta o mesmo a solução. Para este apenas lhe parece possível a
interpretação da norma do nº 5 de que a extensão da decisão só será admissível
após o decurso do prazo de trinta dias a que se refere o mesmo número do artigo
e exclusivamente no caso em que o autor optar pelos efeitos da alínea b), isto
é, requerer a extensão da sentença ao seu caso. “Nos demais casos, a opção do
Autor não se coaduna com a extensão da sentença ou porque desiste do processo,
deixando de haver, por expressa vontade do autor, processo e, consequentemente,
pedido, ou porque requerer o prosseguimento do seu próprio processo
significaria que rejeitava a extensão ao seu processo da decisão já transitada
em julgado.”[6]
Noutro ponto do artigo (nº1 do
artigo 48º) levanta-se uma outra questão que também deu azo à criação de
algumas doutrinas relativas ao assunto que fazem todo o sentido.
A questão em causa é a limitação
do artigo 48º nº1 referente à exigência de para haver a presença da figura da
massificação processual terem os processos que correr num mesmo tribunal, isto
é, tem que haver mais de vinte processos em cada tribunal que pretenda aplicar
o regime da figura em causa.
Para o Professor Wladimir Brito
apesar de a lei não dizer se as vinte e uma pendências têm de ser no mesmo ou
em distintos Tribunais, como faz de forma clara e inequívoca a lei espanhola
tudo indica que tais pendências têm de ocorrer no mesmo Tribunal ou Juízo.
O mesmo Professor diz, no
entanto, que nada obsta que mesmo os processos que corressem os seus termos
noutros Tribunais pudessem ser suspensos até à decisão final dos processos
preferidos. A solução apresentada seria a de que a “lei ordenasse que, adotada
a medida de agilização num dado Tribunal, tal medida fosse, de imediato e por
ofício, comunicada a todos os Tribunais com a indicação da natureza da relação
jurídica controvertida e dos fundamentos da decisão de agilização processual.
Os demais Tribunais verificariam se tinham ou não processos com idêntico “objeto”
e, em caso afirmativo, notificariam as partes, nos termos e para os efeitos do
nº 2 do artigo 48º, ordenando-se, de seguida, a suspensão desses processos até
à prolação da decisão nos processos selecionados, seguindo-se depois os termos
dos números 5 e seguintes do artigo 48º.”[7]
Para defender esta sua posição o
Professor diz que nem se deve dizer que esta posição é inaceitável por ser de
difícil exequibilidade pois a tal objeção responderá que a realização prática
desta doutrina é de longe mais simples do que o cumprimento do nº 1 e do nº 4
do artigo 73º sobre a declaração de ilegalidade de normas com força obrigatória
geral e que, ainda assim, em processo civil é corrente a suspensão de processos
requerida (a suspensão) por qualquer das partes ou até oficiosamente com
fundamento na prejudicialidade.
Não nega porém que dever-se-á
entender que a lei quis restringir a pendência mínima a um único Tribunal.
Refere ainda que esta solução ou
qualquer outra que permitisse ampliar a eficácia prática da disposição do
artigo 48º teria a vantagem de consagrar uma prática judicial e jurisprudencial
que “propicia el cumplimiento del principo de seguridad jurídica, evitación de
sentencias contradictorias y coordinación y eficácia en la actuaction judicial”[8].
Fora de doutrina e no plano
fáctico da história recente há que deixar nota de que na revisão do Código que
chegou a estar projetada no decurso da legislatura precedente, havia a intenção
de alterar este aspeto do regime, atribuindo ao Presidente do Conselho Superior
dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nos casos em que os processos em causa
envolvessem mais do que um tribunal, a competência que o 48º/1 confere ao
presidente do tribunal.
A meu ver (tal como na “visão” do
Professor Wladimir) seria uma alteração a todos os níveis de saudar.
Para finalizar, farei ainda duas
breves notas.
Uma primeira (breve) referência à
norma remissiva presente no artigo 49º (também ele do CPTA) que manda aplicar
às sentenças proferidas no Título III o disposto nos artigos 44º e 45º do CPTA.
Esta disposição permite assim ao Tribunal fixar oficiosamente prazos para o
cumprimento de deveres impostos à Administração nas sentenças, bem como
prorrogar esses prazos e impor sanções pecuniárias compulsórias. Pode, no
entanto, o Tribunal convidar as partes para acordarem o montante da
indemnização que deve ser dada pela Administração ao Autor, sendo que na falta
de acordo o Tribunal fixará pelo seu prudente arbítrio o montante dessa
indemnização.
Breve nota merece também o artigo
161º do CPTA e a extensão dos efeitos da sentença. De forma a prevenir a
interposição de processos em massa para a tutela dos mesmos interesses
jurídicos, sempre que esteja em causa a mesma relação jurídica e se verifiquem
um conjunto de pressupostos elencados no artigo 161º, é possível estender os
efeitos de uma sentença transitada em julgado a outras pessoas que se integrem
na mesma situação jurídica.
Bibliografia:
ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, 2013,
Almedina, pp. 399 a 402
ANDRADE, José Carlos Vieira de, “A Justiça Administrativa
(Lições)”, 2012, 12ª Edição, Almedina, pp. 299 e 300
BRITO, Wladimir, “Direito Processual Administrativo (Lições)”,
2004, Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho, pp. 171 a
186
FARINHO, Domingos Soares, “Os Processos em Massa no Novo
Contencioso Administrativo”, Relatório do Seminário de Direito Administrativo
do Curso de Mestrado 2002/2003
SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso
Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2009, 2ª Edição, Almedina, pp. 284 e
285
____________________________________________________
Rodrigo Manuel Figueiredo Rocha
nº 18386 Subturma 7
Nota: Este artigo foi escrito segundo o Novo Acordo Ortográfico
[1] Posição assumida também
pelo Professor Mário Aroso de Almeida em “Manual de Processo Administrativo”, 2013
pp. 401; e pelo Professor Wladimir Brito
em “Direito Processual
Administrativo (Lições)”, 2004 pp. 179.
[2] Excerto retirado de “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004, do Professor Wladimir
Brito, pp. 179 a 180
[3] Citação retirada de “Direito Processual Administrativo
(Lições)”, 2004, do Professor Wladimir Brito, pp. 180
[4] Citação retirada de “Direito Processual Administrativo
(Lições)”, 2004, do Professor Wladimir Brito, pp. 185
[7]Citação retirada de “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004, do Professor Wladimir
Brito, pp. 176 a 178
[8] José Maria Álvarez-Cienfuegos,
Juan José González Rivas e Gloria Sancho Mayo apud Wladimir Brito em “Direito Processual Administrativo
(Lições)”, 2004.