sábado, 7 de dezembro de 2013

Processos em Massa

A experiência (tanto nacional como internacional) de situações em que um abundante número de processos com origem na entrada em vigor de um preceito que tenha afetado do mesmo modo elevado número de pessoas fez com que em Portugal se sentisse a necessidade de promover a criação de um regime que regulasse e, acima de tudo, resolvesse estas situações. A necessidade de uma rápida, e segura, resolução dos litígios submetidos à apreciação dos Tribunais administrativos falou assim mais alto e foi criada a figura (e o regime) dos processos em massa.

Este regime inovador (em Portugal tratado no artigo 48º do CPTA) inspirou-se no direito espanhol, mais concretamente na Ley de la Jurisdicción Contencioso-Administrativa (Lei 29/1998, de 1 de Julho) e visa, como já se compreendeu, promover a redução do número de litígios a apreciar pelos tribunais. Não se fica, no entanto, apenas por esta intenção. Pretende-se ainda que exista uma uniformização das decisões que (relativamente a questões idênticas) são proferidas pela justiça administrativa, algo que somente ocorrerá se as partes nos processos suspensos aceitarem a decisão proferida no processo ou processos selecionados e não fizerem uso da faculdade de requerer a continuação do processo que lhes diz respeito (processo que será explicado infra).

Com a intenção de fortalecer esta ideia de uniformização da jurisprudência exige-se no nº4 do artigo 48º que todos os juízes do tribunal ou da secção intervenham no julgamento do(s) processo(s) selecionado(s). Pretende-se assim assegurar que a decisão que venha a ser proferida seja assumida por todos os juízes reduzindo a possibilidade de qualquer um desses juízes vir a decidir em sentido oposto em processos suspensos (em que se requeira a continuação do mesmo - art. 48º nº 5 al. c)).

Cabe então explicitar os requisitos para se poder qualificar como um caso de massificação processual. Requisitos esses que se encontram plasmados no nº1 do artigo 48º e que abaixo enunciarei acompanhando de uma breve explicação.

O primeiro requisito é o que alguns autores chamam de requisito de qualificação, neste requisito fixa-se o número mínimo de processos exigidos para se poder qualificar como sendo um caso de processos em massa e sendo esse número mínimo o de vinte e uma pendências (ou mais de vinte processos, dependendo da forma como se quiser explicar).

O requisito seguinte consiste no facto de ter que ser a mesma entidade administrativa que produz o ato em relação a todos os sujeitos processuais por ele (o ato) afetados.

A questão levantada pelo Professor Wladimir Brito é saber o que se entende aqui como mesma entidade administrativa, ao que o mesmo responde defendendo que a resposta a esta questão só poderia ser dada pelo direito administrativo substantivo, visto que só neste ramo do direito nos é oferecida uma definição de entidade administrativa. Ainda assim, o Professor continua a sua linha de raciocínio dizendo que a lei se quer referir quer às pessoas coletivas de direito público (quer a sua natureza seja territorial, quer seja institucional), quer a todo e qualquer ente público que tenha legalmente competência para praticar atos de autoridade.

O terceiro requisito presente no artigo 48º nº1 consiste na necessidade de serem (os processos) relativos à mesma relação jurídica material. Este requisito pode ser considerado como um requisito extra-processual. O porquê desta classificação (como extra-processual) justifica-se pelo facto do litígio ser algo que está necessariamente “antes e fora do processo, por pertencer ao domínio das relações substantivas em que o conflito se consubstancia e que ao se dar ao processo nele se assume como a causa do litígio e da relação jurídico-processual”. No ponto de vista processual esta identidade da relação jurídica material tem de ser procurada na causa de pedir e nunca no pedido, pois é naquela que ela deve ser revelada.

O último, mas não menos importante requisito consiste na suscetibilidade de serem decididos com base na aplicação das mesmas normas a idênticas situações de facto. Escusado será dizer que essas normas serão aquelas que o juiz entenda serem aplicáveis para a resolução do caso, uma vez que o Juiz não está vinculado à qualificação jurídica dos factos nem à solução de direito oferecida pelas partes (inclusive da Administração). Cabe exclusivamente ao Juiz essa decisão.

Enumerados os requisitos e toda a complexidade do regime em apreço, que não se afigura isento de dificuldades, não se deve deixar de frisar que deve ser manuseado pelos tribunais com precaução[1].

Quanto à tramitação deste tipo de processos é a dos processos urgentes a utilizada.

“Se for reconhecido judicialmente a observância de todos os requisitos acima referidos, o Presidente do Tribunal “pode determinar, ouvidas as partes, que seja dado andamento a apenas um ou alguns deles, que neste último caso são apensadas num único processo, e se suspenda a tramitação dos demais”, reza a segunda parte do nº1 do artigo 48º.

A lei não impõe ao Juiz a obrigação de classificar de massificação processual a situação pendencial existente no seu Tribunal, cabendo-lhe em cada momento decidir se deve ou não declarar como de massificação processual a existência de vários processos que reúnam os requisitos acima referidos. Caso decida fazer tal declaração deverá:

1) Ordenar por despacho fundamentado, a audição das partes, informando-as da pendência de mais de vinte processos que preenchem os requisitos legais para que seja aplicada a norma do artigo 48º e convidando-as a pronunciar-se sobre a situação, no prazo ente cinco e vinte dias, por serem estes os prazos para a pronúncia das partes nos processos urgentes, aplicável ex vi do artigo 48º nº4 (veja-se o artigo. 99º, 102º, 107º e 110º do Código);

2)  Decorrido o prazo da pronúncia das partes, por despacho fundamentado proferido num dos processos deverá o Juiz declarar a situação de massificação processual e decidir nesse mesmo despacho que processo ou processos classifica como processo(s) selecionado(s) para efeitos de apreciação e decisão. Decidindo classificar de selecionados dois ou mais processos, deverá o Juiz ordenar que sejam apensados ao mais antigo e que cópia desse seu despacho seja junto a cada um dos vários processos pendentes no seu Tribunal. Nesses despachos deverá ainda o Juiz identificar todos os processos, para que as partes possam consultá-los, se assim entenderem;

3)   Constituída a situação de massificação processual o(s) processo(s) são instruídos de acordo com a tramitação estabelecida para os processos urgentes, devendo, no julgamento, apreciar-se exaustivamente todas as questões de facto e de direito.”[2]

Neste ponto da tramitação relativo aos processos urgentes cabe fazer um parêntesis uma vez que no artigo 48º nº 4 não é referido qual o processo urgente a que se refere e seria importante saber-se, uma vez que, como já havia sido estudado, nos processos urgentes temos uma tramitação específica para cada um deles. Tanto temos a tramitação própria das impugnações do contencioso eleitoral (99º), como uma outra própria do contencioso pré-contratual (102º), como ainda, uma outra para as intimações (107º e 110º) e, finalmente, uma tramitação para os processos cautelares. Nestas diferentes tramitações são estabelecidos prazos distintos, pelo que acabamos por ficar sem saber quais os prazos a que deve o Juiz obedecer.

O Professor Wladimir Brito apresenta mais uma vez uma solução para este caso de pouca clareza da lei. Diz-nos o mesmo que “tendo em atenção que a urgência desses processos em massa é relativa e não pode ser equiparada à dos processos de contencioso eleitoral, nem à das intimações, nas suas duas modalidades, somos de opinião que a tramitação a seguir deverá ser a do contencioso pré-contratual, por serem mais longos e, nessa medida, os únicos que não limitam anormalmente o âmbito da instrução nem condicionam excessivamente apreciação dos factos e a realização das diligências de prova necessárias para o completo apuramento da verdade.[3]

4)   Julgado o processo, se o Tribunal entender que a mesma solução de direito pode ser aplicada aos processos suspensos deverá previamente notificar as partes desses processos que poderão adotar uma das seguintes atitudes, no prazo de 30 dias (art.48º nº5):

a. Desistência do seu processo - se a decisão do processo-modelo (ou processo selecionado) tiver sido de improcedência e ele se conformar com a decisão da sentença;

b. Requerer a extensão ao seu caso da decisão proferida para efeitos de execução - o que significa que aceita a aplicação ao seu caso da decisão proferida no processo selecionado;

c. Requerer a continuação do próprio processo - o que significa que não aceita a aplicação ao seu caso da decisão proferida no processo ou processos selecionados e prefere tentar a sua sorte no próprio processo que intentou.

d. Recorrer da sentença, se ela tiver sido proferida em primeira instância. Este recurso, se tiver êxito, só será aproveitado para quem o pediu, para o efeito de lhe permitir beneficiar de uma decisão de sentido diferente para o seu caso. Não é aproveitado pelas partes no processo selecionado, em relação às quais se formou caso julgado.

Em relação à alínea d) apresenta o Professor Wladimir mais uma crítica. Crítica que consiste no carácter incompreensível desta opção jurídico-processual, uma vez que “não se entende como é que alguém pode recorrer de uma decisão antes de esta lhe ser aplicável, mesmo que por extensão. Antes de o autor optar pela extensão ao seu processo da sentença proferida nos processos selecionados não há sentença no seu processo, pelo que não pode recorrer de sentença inexistente.”[4]

No âmbito da mesma discussão o Professor Vieira de Andrade fala numa situação especial de recurso posterior à formação do caso julgado.

Quanto aos efeitos da pronúncia proferida nos processos selecionados são complexos e merecem uma análise mesmo que breve, começando por fazer um breve comentário ao texto do nº 5 do artigo 48º, mais especificamente em relação aos 30 dias, uma vez que ficamos sem saber se o Tribunal terá de aguardar o decurso dos trinta dias para estender a decisão aos processos suspensos ou se tal extensão é automática.

Reza o nº 5 que, entendendo o Tribunal que a mesma solução plasmada na pronúncia pode ser aplicada aos processos suspensos, as partes são imediatamente notificadas da sentença para que o autor nesses processos opte por uma das quatro soluções acima transcritas. Na “visão” do Professor Wladimir Brito a lei quer conceder ao autor a oportunidade de tomar uma decisão e de a comunicar ao Tribunal antes de ser aplicada, por extensão, a pronúncia judicial já proferida nos processos selecionados.

Se seguirmos este entendimento (e mais uma vez na ótica do Professor Wladimir) torna-se contraditório admitir que, antes de cada um dos autores dos processos suspensos se pronunciarem sobre a opção que irão fazer, a pronúncia judicial transitada em julgado, ser estendida aos processos suspensos.       
      
Ora, não parece minimamente aceitável interpretar a norma do nº 5 no sentido de a decisão judicial transitada em julgado ser aplicável aos processos suspensos antes dos respetivos autores tomarem posição, optando por uma das quatro possibilidades que o mesmo artigo lhes confere. Não é aceitável aceitar que tal decisão se considere automaticamente aplicada aos processos suspensos, antes sequer da opção dos autores acima referida. “A não se entender assim, a opção concedida aos autores seria inútil, qualquer que ela fosse, no momento em que era comunicada ao Tribunal, dado que a decisão judicial já estaria estendida a esses processos.”[5]

Exatamente pelas razões indicadas pelo autor apresenta o mesmo a solução. Para este apenas lhe parece possível a interpretação da norma do nº 5 de que a extensão da decisão só será admissível após o decurso do prazo de trinta dias a que se refere o mesmo número do artigo e exclusivamente no caso em que o autor optar pelos efeitos da alínea b), isto é, requerer a extensão da sentença ao seu caso. “Nos demais casos, a opção do Autor não se coaduna com a extensão da sentença ou porque desiste do processo, deixando de haver, por expressa vontade do autor, processo e, consequentemente, pedido, ou porque requerer o prosseguimento do seu próprio processo significaria que rejeitava a extensão ao seu processo da decisão já transitada em julgado.”[6]

Noutro ponto do artigo (nº1 do artigo 48º) levanta-se uma outra questão que também deu azo à criação de algumas doutrinas relativas ao assunto que fazem todo o sentido.

A questão em causa é a limitação do artigo 48º nº1 referente à exigência de para haver a presença da figura da massificação processual terem os processos que correr num mesmo tribunal, isto é, tem que haver mais de vinte processos em cada tribunal que pretenda aplicar o regime da figura em causa.

Para o Professor Wladimir Brito apesar de a lei não dizer se as vinte e uma pendências têm de ser no mesmo ou em distintos Tribunais, como faz de forma clara e inequívoca a lei espanhola tudo indica que tais pendências têm de ocorrer no mesmo Tribunal ou Juízo.

O mesmo Professor diz, no entanto, que nada obsta que mesmo os processos que corressem os seus termos noutros Tribunais pudessem ser suspensos até à decisão final dos processos preferidos. A solução apresentada seria a de que a “lei ordenasse que, adotada a medida de agilização num dado Tribunal, tal medida fosse, de imediato e por ofício, comunicada a todos os Tribunais com a indicação da natureza da relação jurídica controvertida e dos fundamentos da decisão de agilização processual. Os demais Tribunais verificariam se tinham ou não processos com idêntico “objeto” e, em caso afirmativo, notificariam as partes, nos termos e para os efeitos do nº 2 do artigo 48º, ordenando-se, de seguida, a suspensão desses processos até à prolação da decisão nos processos selecionados, seguindo-se depois os termos dos números 5 e seguintes do artigo 48º.”[7]

Para defender esta sua posição o Professor diz que nem se deve dizer que esta posição é inaceitável por ser de difícil exequibilidade pois a tal objeção responderá que a realização prática desta doutrina é de longe mais simples do que o cumprimento do nº 1 e do nº 4 do artigo 73º sobre a declaração de ilegalidade de normas com força obrigatória geral e que, ainda assim, em processo civil é corrente a suspensão de processos requerida (a suspensão) por qualquer das partes ou até oficiosamente com fundamento na prejudicialidade.

Não nega porém que dever-se-á entender que a lei quis restringir a pendência mínima a um único Tribunal. 

Refere ainda que esta solução ou qualquer outra que permitisse ampliar a eficácia prática da disposição do artigo 48º teria a vantagem de consagrar uma prática judicial e jurisprudencial que “propicia el cumplimiento del principo de seguridad jurídica, evitación de sentencias contradictorias y coordinación y eficácia en la actuaction judicial”[8].

Fora de doutrina e no plano fáctico da história recente há que deixar nota de que na revisão do Código que chegou a estar projetada no decurso da legislatura precedente, havia a intenção de alterar este aspeto do regime, atribuindo ao Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nos casos em que os processos em causa envolvessem mais do que um tribunal, a competência que o 48º/1 confere ao presidente do tribunal.

A meu ver (tal como na “visão” do Professor Wladimir) seria uma alteração a todos os níveis de saudar.

Para finalizar, farei ainda duas breves notas.

Uma primeira (breve) referência à norma remissiva presente no artigo 49º (também ele do CPTA) que manda aplicar às sentenças proferidas no Título III o disposto nos artigos 44º e 45º do CPTA. Esta disposição permite assim ao Tribunal fixar oficiosamente prazos para o cumprimento de deveres impostos à Administração nas sentenças, bem como prorrogar esses prazos e impor sanções pecuniárias compulsórias. Pode, no entanto, o Tribunal convidar as partes para acordarem o montante da indemnização que deve ser dada pela Administração ao Autor, sendo que na falta de acordo o Tribunal fixará pelo seu prudente arbítrio o montante dessa indemnização.

Breve nota merece também o artigo 161º do CPTA e a extensão dos efeitos da sentença. De forma a prevenir a interposição de processos em massa para a tutela dos mesmos interesses jurídicos, sempre que esteja em causa a mesma relação jurídica e se verifiquem um conjunto de pressupostos elencados no artigo 161º, é possível estender os efeitos de uma sentença transitada em julgado a outras pessoas que se integrem na mesma situação jurídica.



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Bibliografia:

ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, 2013, Almedina, pp. 399 a 402

ANDRADE, José Carlos Vieira de, “A Justiça Administrativa (Lições)”, 2012, 12ª Edição, Almedina, pp. 299 e 300

BRITO, Wladimir, “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004, Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho, pp. 171 a 186

FARINHO, Domingos Soares, “Os Processos em Massa no Novo Contencioso Administrativo”, Relatório do Seminário de Direito Administrativo do Curso de Mestrado 2002/2003

SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2009, 2ª Edição, Almedina, pp. 284 e 285

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Rodrigo Manuel Figueiredo Rocha  nº 18386  Subturma 7





Nota: Este artigo foi escrito segundo o Novo Acordo Ortográfico 



[1] Posição assumida também pelo Professor Mário Aroso de Almeida em “Manual de Processo Administrativo”, 2013 pp. 401; e pelo Professor Wladimir Brito em “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004 pp. 179.
[2] Excerto retirado de “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004, do Professor Wladimir Brito, pp. 179 a 180
[3] Citação retirada de “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004, do Professor Wladimir Brito, pp. 180

[4] Citação retirada de “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004, do Professor Wladimir Brito, pp. 185
[5] [6] Citações retiradas de “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004, do Professor Wladimir Brito, pp. 181 a 183
[7]Citação retirada de “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004, do Professor Wladimir Brito, pp. 176 a 178                                                                                                                                                           
[8] José Maria Álvarez-Cienfuegos, Juan José González Rivas e Gloria Sancho Mayo apud Wladimir Brito em “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004.

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Processos Cautelares


Verificado um alargamento substancial da tutela cautelar no novo contencioso administrativo, cabe deste modo enunciar alguns dos aspectos mais relevantes  das providências cautelares.
O CPTA, no seu artigo 36º, estabelece à partida o carácter urgente de todo o regime cautelar. De facto, a urgência surge como o seu traço principal, e mais do que isso, essencial. Numa tentativa de definição de providência cautelar, poder-se-á dizer que se trata de um meio processual destinado a assegurar a utilidade de uma sentença a proferir num processo declativo. Para  mais concretização sublinha-se a instrumentalidade, provisoriedade e sumariedade que subjaz ao regime imposto pelo CPTA.
 Assim sendo, numa relação com o processo principal, e nos termos do artigo 113º, a providência intentada num momento anterior ( e por isso preliminar) caduca  se o interessado não fizer uso de um meio principal adequado, ainda nos termos do artigo 123 nº1 e nº2 do CPTA.
 A instrumentalidade é também notória no que toca à legitimidade para desencadear o processo cautelar. Mais uma vez, esta averigua-se em conformidade com a respectiva legitimidade para intentar processo principal.
 A tutela cautelar tem também carácter provisório, uma vez que tipicamente o tribunal tem a possibilidade ( e tem de ter) de revogar, substituir e alterar a providência concedida. É o que resulta dos artigos 120º e 124º do CPTA. Note-se que apesar de a providência poder antecipar provisoriamente o conteúdo da decisão de mérito em processo principal, não pode ao momento tempo torná-lo inútil. Ou seja, há certas situações que não podem ser decididas com recurso a este meio, sob pena de destruir os poderes conferidos pelo artigo 124º, e tolerar decisões, à partida provisórias, mas irreversíveis.
 Acresce ainda a sumariedade como traço distintivo destes processos. Dada a urgência que emana da instauração de providências cautelares, cabe ao juiz administrativo realizar um juízo sumário sobre os factos. Apela-se, deste modo, a um investimento proporcional no esclarecimento de questões de fundo.

Contextualizado o regime, é importante salientar, no actual contencioso administrativo, as espécies de providências que o CPTA acolhe.
 A cláusula aberta constante do artigo 112º enuncia algumas, sublinhe-se, a titulo meramente exemplificativo. No entanto, o preceito introduz uma contraposição, que na esteira de Mário Aroso de Almeida, deve ser interpretada em sentido funcional. Assim, distingue-as entre conservatórias e antecipatórias. As primeiras destinam-se a tutelar situações finais que envolvam a abstenção de adopção de condutas. Por sua vez, as antecipatórias implicam a tutela de situações instrumentais e dinâmicas, em que o requerente pretende obter uma prestação destinada à satisfação do seu interesse.
  Sublinhamos novamente a interpretação funcional, relevante designadamente, quanto aos critérios de atribuição de providências cautelares.
Desta feita, os requisitos de que depende a concessão referida, nos termos do artigo 120º do CPTA, preveêm uma relevância diferente consoante se esteja perante o tipo conservatório ou antecipatório, à excepção da alínea a) que se apresenta como uma “ norma derrogatória”.
 São três os critérios que o legislador administrativo impôs. Primeiramente, o Periculum in mora que traduz a irreparabilidade da situação referida. Assim, sempre que factos concretos alegados pelo requerente inspirem um “ receio fundado” de que, numa eventual recusa de providência, seja impossível em processo principal restabelecer, no plano dos factos , a legalidade. Nesta acepção, relembramos a sumariedade conciliada com um juízo de probabilidade em sede de concessão ou recusa de providências cautelares.
 Cumulativamente,  o critério Fumus boni iuris , tem efectivamente de estar preenchido em todo o processo cautelar. Apresentando uma relevância diferenciada no que toca a providências conservatórias ou antecipatórias ( tendo um papel mais limitado nas primeiras), ao juiz é imposta uma avaliação da probabilidade do êxito do requerente no processo declarativo.
Finalmente, o artigo 120 nº2 estabelece um requisito comum a todas as providências : Ponderação de interesses. Este refere-se à essencial relatividade do juízo valorativo por parte do juiz administrativo.  Mário Aroso de Almeida utiliza para exprimir o sentido do preceito “ cláusula de salvaguarda”, uma vez que é neste momento do processo que se realiza o balanço entre titulares com interesses opostos, e consequentemente estabelece um travão à concessão desproporcionada de providências.
 Para além destes critérios, o princípio da necessidade e adequação vem concretizado no nº 3 do artigo em análise, que dá a possibilidade ao juiz de adoptar a providência mais adeuada.
À cautela, referimos apenas que o CPTA estabeleceu também regimes especiais de atribuição, que não cabe aqui explicitar.
Concluindo a descrição de funções e  características dos processos cautelares  é importante salientar a tutela jurisdicional efectiva patente no regime atrás exposto, cumprindo assim o preceito constitucional que a impõe – artigo 268º da Constituição da República Portuguesa.

Bibliografia :
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o processo Civil, LEX, 1997
VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, 2º edição, 2009

JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, Almedina, 11ª edição, 2011

Decretamento provisório de providências cautelares



  
          O artigo 131.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativo (doravante CPTA) consagra a figura do decretamento provisório de providências cautelares. De acordo com o artigo referido, é possível que o tribunal conceda, provisoriamente, uma providência cautelar imediatamente após a apresentação do respectivo requerimento. Esta concessão provisória destina-se a evitar o periculum in mora do próprio processo cautelar, evitando os danos que possam ocorrer na pendência desse processo. 


          A figura em apreço pode intervir tanto nos casos em que o decretamento imediato da providência seja necessário para “tutelar direitos, liberdades e garantias que de outro modo não possam ser exercidas em tempo útil” (artigo 131.º/1 do CPTA) e que, por conseguinte, estejam em risco de sofrer uma “lesão iminente e irreversível” (artigo 131.º/3 do CPTA), como nos restantes casos de “especial urgência” em que a aplicação da figura se justifique[1]. Esta extensão do regime a todos os casos em que se “entenda haver especial urgência” justifica-se como uma decorrência da garantia da tutela jurisdicional efectiva consagrada no artigo 268.º/4 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP).

               Como salienta LOPES DE SOUSA, o campo de aplicação do artigo 131.º do CPTA é muito mais vasto do que o previsto no artigo 20.º/5 da CRP, visto que, permite-se a utilização do procedimento em qualquer situação de especial urgência, não se fazendo uma restrição da aplicação do regime aos casos em que estejam em causa direitos, liberdades e garantias pessoais[2].        
    

       Regra geral, o decretamento provisório emerge na sequência de um pedido que seja autonomamente deduzido no requerimento cautelar, de acordo com o artigo 131.º/1 do CPTA. Não obstante, MÁRIO AROSO DE ALMEIDA entende que, à luz do princípio da tutela jurisdicional efectiva, nada evidencia que o decretamento provisório tenha de ser pedido no requerimento a que se refere o artigo 114.º do CPTA[3]. No mesmo sentido, também CARLOS FERNANDES CADILHA afirma que o pedido de decretamento provisório deve poder ser objecto de um incidente, dado que a evolução das circunstâncias na pendência do processo cautelar pode vir a exigir um decretamento provisório que não se justificava inicialmente[4].

            Tem sido discutida a possibilidade de, ainda que o decretamento provisório não tenha sido requerido formal e autonomamente pelo interessado, poder o juiz decidi-lo oficiosamente. MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e VIEIDA DE ANDRADE respondem afirmativamente à questão com base numa interpretação à luz do princípio da tutela jurisdicional efectiva. Parece-nos realmente ser esta a posição que melhor se coaduna com o princípio referido, pelo que o decretamento oficioso pode ter lugar sempre que se verifiquem os pressupostos do artigo 131.º do CPTA[5].


               A tramitação do incidente acima referido desdobra-se em duas fases sucessivas, nos termos do artigo 131.º/3 e 6 do CPTA. Na primeira fase, regulada pelo n.º 3, o tribunal decreta a providência provisória, no período de 48h e sem contraditório; na segunda fase, regulada no n.º6, é dada ao juiz a possibilidade de rever a decisão tomada e assegura-se o contraditório.

        MÁRIO AROSO DE ALMEIDA considera que os critérios em que deve assentar o decretamento provisório variam consoante a fase de tramitação do incidente. Assim, na primeira fase (artigo 131.º/3 do CPTA), é necessário que se verifique um periculum in mora qualificado, isto é, o perigo de uma lesão tem de ser, para além de irreversível, iminente. O que significa que o perigo em questão não se refere à morosidade do processo principal, mas sim à morosidade do próprio processo cautelar. Na segunda fase (artigo 131.º/6 do CPTA), o juiz não deve deixar de atender aos critérios que lhe cumpre aplicar na própria decisão do processo cautelar, só podendo o decretamento provisório ser levantado em situações de evidência desfavorável ao requerente[6]. [7]

               Se todos os pressupostos referidos no artigo 131.º/3 do CPTA estiverem preenchidos, o juiz decreta a providência provisória. De acordo com o artigo 131.º/6 do CPTA, os efeitos deste decretamento deverão ser imediatamente notificados às autoridades às quais se dirige a providência, segundos as regras dos actos urgentes (artigo 122.º/1 do CPTA).

             O decretamento acima referido deve ser posteriormente avaliado, procurando o juiz averiguar da necessidade de o levantar, alterar ou manter, nos termos do 131º/6.


               Cumpre referir que no caso de decretamento provisório afasta-se o requisito do fumus boni iuris que consta de todas as medidas cautelares previstas no artigo 120.º do CPTA. LOPES DE SOUSA entende que o afastamento deste requisito se justifica pelo facto de o mero exame da petição permitir formular um juízo indiciário razoavelmente seguro sobre a existência do periculum in mora, sendo esse o entendimento legislativo adoptado pelo CPTA (artigos 111.º/1 e 131.º/3)[8].

             O decretamento provisório, por ser um procedimento extremamente célere (48h) e prioritário, é decidido pelo tribunal «colhidos os elementos a que tenha acesso imediato e sem quaisquer outras formalidades e diligências» (tal como refere o artigo 131.º/3 do CPTA).A omissão de formalidades e diligências é explicada por razões de ordem prática, de modo a evitar a perturbação do bom funcionamento global dos serviços nos tribunais[9].

            A solução de decretar medidas cautelares sem consideração do fumus boni iuris não é estranha ao contencioso administrativo. No âmbito da suspensão da eficácia de actos administrativos (artigo 128.º/1 do CPTA) desconsidera-se o requisito em questão, bem como a verificação do periculum in mora. Assim, no caso de aplicação do artigo 128.º do CPTA, haverá apenas uma apreciação dos fundamentos de rejeição que constam no artigo 116.º do CPTA.


                Apesar da semelhança entre os regimes acima enunciados no que toca aos seus requisitos, importa ressalvar que a proibição de execução do acto prevista no artigo 128.º do CPTA não se confunde com o decretamento provisório do artigo 131.º do CPTA. Como ilustra TIAGO AMORIM, no domínio do primeiro artigo referido estamos perante uma proibição imposta à autoridade administrativa no sentido de iniciar ou prosseguir a execução do acto na pendência do processo cautelar. Assim, não há intervenção do juiz no sentido de decretar uma verdadeira providência. Diferentemente, no artigo 131.º do CPTA, o tribunal decreta a título provisório uma providência, que vigora na pendência do processo cautelar, de modo a assegurar a utilidade da decisão a proferir no processo cautelar em causa[10].

             Na prática, só poderia haver sobreposição dos artigos anteriormente referidos se eles se aplicassem aos mesmos casos. Contudo, tal não acontece. O regime do artigo 128.º do CPTA apenas tem aplicação nas providências de suspensão de eficácia. Já o artigo 131.º do CPTA aplica-se às demais providências cautelares, com exclusão dos casos que se aplica o artigo 128.º do CPTA (suspensão de eficácia de actos administrativos ou normas administrativas)[11].

             Ainda no âmbito do decretamento provisório, cumpre analisar o n.º 5 do artigo 131.º do CPTA. Este preceito estabelece a inimpugnabilidade da decisão provisória. Tal impossibilidade apenas respeita à decisão provisória a que alude o número 3 e já não à decisão que consta do n.º 6 do referido artigo. No caso desta última decisão (de levantamento, manutenção ou alteração da providência) a impugnabilidade é admitida nos termos gerais, como ressalva LOPES DE SOUSA[12]


              Para concluir, importa apenas contrapor o regime do artigo 131º CPTA com o regime do artigo 109º CPTA, que consagra a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.

    A intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias constitui um processo urgente e principal, caracterizado por uma tramitação sumária e dirigido à produção de uma sentença de mérito definitiva. Como ilustra FERNADA MAÇAS, este processo só pode ser utilizado quando, para assegurar o exercício de um direito, liberdade ou garantia, não seja suficiente o decretamento provisório de uma providência cautelar[13]. Podemos afirmar que existe uma relação de subsidiariedade entre os artigos 131.º e 109.º do CPTA, visto que este último só se aplica quando o primeiro não se possa aplicar ou a quando a sua aplicação não seja suficiente para tutelar os bens em causa.

   A maioria da doutrina entende que, quando num caso em concreto se venha a constatar que a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não é o meio processual mais adequado para uma determinada causa, o pedido deve ser requalificado como pedido cautelar. Quer isto dizer que o juiz deve convolar oficiosamente o processo de intimação em processo cautelar e, havendo necessidade, decretar provisoriamente a providência.

   Diferentemente, no caso de se requerer indevidamente um mecanismo cautelar, parte da doutrina defende que, ao abrigo do 88º, o tribunal possa requerer o aperfeiçoamento do articulado, para que este preencha os pressupostos de aplicação do artigo 109.º do CPTA.



Bibliografia

- ALMEIDA, Mário Aroso de, Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2012;

- ALMEIDA, Mário Aroso de / CADILHA, Carlos Fernandes, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 3ª edição, 2010;

 - AMORIM, Tiago, As providências cautelares no CPTA: um primeiro balanço, CJA n.º 47, 2004;

 - ANDRADE, Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, Coimbra, 10ªedição;

- ANTUNES, Tiago, O «Triângulo das Bermudas» no novo contencioso administrativo, no Novo Contencioso Administrativo”, Estudos em Homenagem ao Professor Marcello Caetano, II, 2006;

- MAÇAS, Fernanda, Meios urgentes e tutela cautelar -  perplexidade quanto ao sentido e alcance de alguns mecanismos de tutela urgente, A nova justiça administrativa, CEJ, Coimbra Editora, 2006;

- SOUSA, Luís Lopes de, Notas práticas sobre o decretamento provisório de providências cautelares, CJA n.º 47, 2004; 









[1] De acordo com MÁRIO AROSO DE ALMEIDA (Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2012, p. 455.), a densificação da expressão “outra situação de especial urgência” que consta do artigo 131.º/1 do CPTA deve passar por uma interpretação de conjunto com o n.º 3 do mesmo artigo. Assim, a utilização da expressão citada leva a crer que o legislador reconhece a aplicação do regime em análise sempre que os direitos ou interesses legalmente protegidos do requerente estejam em risco de sofrer uma “lesão iminente e irreversível”.

[2] JORGE LOPES DE SOUSA, Notas práticas sobre o decretamento provisório de providências cautelares, CJA n.º 47, 2004, p. 46.

[3] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2012, p. 453.

[4] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA/ CARLOS FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativo, Almedina, 3ª edição, 2010 – anotação ao artigo 131º, p. 871.

[5] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2012, p. 453; VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 10ªedição, p. 372.

[6] MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, Coimbra, 2012, p. 457.

[7] Em sentido contrário, VIEIRA DE ANDRADE admite que apenas se deve recorrer aos critérios da decisão preliminar, devido à especial perigosidade para os bens. Defende o Autor que, quando se recorra aos critérios do artigo 120.º, pode já o juiz tomar uma decisão que seja a definitiva para o processo cautelar principal (VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa (Lições), 10ªedição, p. 373.).

[8] JORGE LOPES DE SOUSA, Notas práticas sobre o decretamento provisório de providências cautelares, CJA n.º 47, 2004, pp. 48 e 49.

[9]  Neste sentido, LOPES DE SOUSA refere que, “o procedimento de decretamento provisório não foi estruturado com a preocupação de possibilitar ao requerente demonstrar a consistência do pedido formulado ou a formular no processo principal” (JORGE LOPES DE SOUSA, Notas práticas sobre o decretamento provisório de providências cautelares, CJA n.º 47, 2004, p. 49).

[10] TIAGO AMORIM, As providências cautelares no CPTA: um primeiro balanço, CJA n.º 47, 2004, p. 43.

[11] Nos casos em que se aplica o regime do artigo 128º do CPTA, suscita-se ainda a questão de saber qual o momento a partir do qual nasce a proibição de iniciar ou prosseguir o acto e impedir que os serviços o façam. Na opinião de TIAGO AMORIM (As providências cautelares no CPTA: um primeiro balanço, CJA n.º 47, 2004, p. 44.), a proibição aqui em apreço só surge após a citação, pelo que os actos praticados antes desse momento não devem ser objecto de declaração de ineficácia.

[12]  JORGE LOPES DE SOUSA, Notas práticas sobre o decretamento provisório de providências cautelares, CJA n.º 47, 2004, p. 58.


[13] FERNANDA MAÇAS, Meios urgentes e tutela cautelar -  perplexidade quanto ao sentido e alcance de alguns mecanismos de tutela urgente, A nova justiça administrativa, CEJ, Coimbra Editora, 2006.  


Anabela Frutuoso ( 21045)