sábado, 7 de dezembro de 2013

Processos em Massa

A experiência (tanto nacional como internacional) de situações em que um abundante número de processos com origem na entrada em vigor de um preceito que tenha afetado do mesmo modo elevado número de pessoas fez com que em Portugal se sentisse a necessidade de promover a criação de um regime que regulasse e, acima de tudo, resolvesse estas situações. A necessidade de uma rápida, e segura, resolução dos litígios submetidos à apreciação dos Tribunais administrativos falou assim mais alto e foi criada a figura (e o regime) dos processos em massa.

Este regime inovador (em Portugal tratado no artigo 48º do CPTA) inspirou-se no direito espanhol, mais concretamente na Ley de la Jurisdicción Contencioso-Administrativa (Lei 29/1998, de 1 de Julho) e visa, como já se compreendeu, promover a redução do número de litígios a apreciar pelos tribunais. Não se fica, no entanto, apenas por esta intenção. Pretende-se ainda que exista uma uniformização das decisões que (relativamente a questões idênticas) são proferidas pela justiça administrativa, algo que somente ocorrerá se as partes nos processos suspensos aceitarem a decisão proferida no processo ou processos selecionados e não fizerem uso da faculdade de requerer a continuação do processo que lhes diz respeito (processo que será explicado infra).

Com a intenção de fortalecer esta ideia de uniformização da jurisprudência exige-se no nº4 do artigo 48º que todos os juízes do tribunal ou da secção intervenham no julgamento do(s) processo(s) selecionado(s). Pretende-se assim assegurar que a decisão que venha a ser proferida seja assumida por todos os juízes reduzindo a possibilidade de qualquer um desses juízes vir a decidir em sentido oposto em processos suspensos (em que se requeira a continuação do mesmo - art. 48º nº 5 al. c)).

Cabe então explicitar os requisitos para se poder qualificar como um caso de massificação processual. Requisitos esses que se encontram plasmados no nº1 do artigo 48º e que abaixo enunciarei acompanhando de uma breve explicação.

O primeiro requisito é o que alguns autores chamam de requisito de qualificação, neste requisito fixa-se o número mínimo de processos exigidos para se poder qualificar como sendo um caso de processos em massa e sendo esse número mínimo o de vinte e uma pendências (ou mais de vinte processos, dependendo da forma como se quiser explicar).

O requisito seguinte consiste no facto de ter que ser a mesma entidade administrativa que produz o ato em relação a todos os sujeitos processuais por ele (o ato) afetados.

A questão levantada pelo Professor Wladimir Brito é saber o que se entende aqui como mesma entidade administrativa, ao que o mesmo responde defendendo que a resposta a esta questão só poderia ser dada pelo direito administrativo substantivo, visto que só neste ramo do direito nos é oferecida uma definição de entidade administrativa. Ainda assim, o Professor continua a sua linha de raciocínio dizendo que a lei se quer referir quer às pessoas coletivas de direito público (quer a sua natureza seja territorial, quer seja institucional), quer a todo e qualquer ente público que tenha legalmente competência para praticar atos de autoridade.

O terceiro requisito presente no artigo 48º nº1 consiste na necessidade de serem (os processos) relativos à mesma relação jurídica material. Este requisito pode ser considerado como um requisito extra-processual. O porquê desta classificação (como extra-processual) justifica-se pelo facto do litígio ser algo que está necessariamente “antes e fora do processo, por pertencer ao domínio das relações substantivas em que o conflito se consubstancia e que ao se dar ao processo nele se assume como a causa do litígio e da relação jurídico-processual”. No ponto de vista processual esta identidade da relação jurídica material tem de ser procurada na causa de pedir e nunca no pedido, pois é naquela que ela deve ser revelada.

O último, mas não menos importante requisito consiste na suscetibilidade de serem decididos com base na aplicação das mesmas normas a idênticas situações de facto. Escusado será dizer que essas normas serão aquelas que o juiz entenda serem aplicáveis para a resolução do caso, uma vez que o Juiz não está vinculado à qualificação jurídica dos factos nem à solução de direito oferecida pelas partes (inclusive da Administração). Cabe exclusivamente ao Juiz essa decisão.

Enumerados os requisitos e toda a complexidade do regime em apreço, que não se afigura isento de dificuldades, não se deve deixar de frisar que deve ser manuseado pelos tribunais com precaução[1].

Quanto à tramitação deste tipo de processos é a dos processos urgentes a utilizada.

“Se for reconhecido judicialmente a observância de todos os requisitos acima referidos, o Presidente do Tribunal “pode determinar, ouvidas as partes, que seja dado andamento a apenas um ou alguns deles, que neste último caso são apensadas num único processo, e se suspenda a tramitação dos demais”, reza a segunda parte do nº1 do artigo 48º.

A lei não impõe ao Juiz a obrigação de classificar de massificação processual a situação pendencial existente no seu Tribunal, cabendo-lhe em cada momento decidir se deve ou não declarar como de massificação processual a existência de vários processos que reúnam os requisitos acima referidos. Caso decida fazer tal declaração deverá:

1) Ordenar por despacho fundamentado, a audição das partes, informando-as da pendência de mais de vinte processos que preenchem os requisitos legais para que seja aplicada a norma do artigo 48º e convidando-as a pronunciar-se sobre a situação, no prazo ente cinco e vinte dias, por serem estes os prazos para a pronúncia das partes nos processos urgentes, aplicável ex vi do artigo 48º nº4 (veja-se o artigo. 99º, 102º, 107º e 110º do Código);

2)  Decorrido o prazo da pronúncia das partes, por despacho fundamentado proferido num dos processos deverá o Juiz declarar a situação de massificação processual e decidir nesse mesmo despacho que processo ou processos classifica como processo(s) selecionado(s) para efeitos de apreciação e decisão. Decidindo classificar de selecionados dois ou mais processos, deverá o Juiz ordenar que sejam apensados ao mais antigo e que cópia desse seu despacho seja junto a cada um dos vários processos pendentes no seu Tribunal. Nesses despachos deverá ainda o Juiz identificar todos os processos, para que as partes possam consultá-los, se assim entenderem;

3)   Constituída a situação de massificação processual o(s) processo(s) são instruídos de acordo com a tramitação estabelecida para os processos urgentes, devendo, no julgamento, apreciar-se exaustivamente todas as questões de facto e de direito.”[2]

Neste ponto da tramitação relativo aos processos urgentes cabe fazer um parêntesis uma vez que no artigo 48º nº 4 não é referido qual o processo urgente a que se refere e seria importante saber-se, uma vez que, como já havia sido estudado, nos processos urgentes temos uma tramitação específica para cada um deles. Tanto temos a tramitação própria das impugnações do contencioso eleitoral (99º), como uma outra própria do contencioso pré-contratual (102º), como ainda, uma outra para as intimações (107º e 110º) e, finalmente, uma tramitação para os processos cautelares. Nestas diferentes tramitações são estabelecidos prazos distintos, pelo que acabamos por ficar sem saber quais os prazos a que deve o Juiz obedecer.

O Professor Wladimir Brito apresenta mais uma vez uma solução para este caso de pouca clareza da lei. Diz-nos o mesmo que “tendo em atenção que a urgência desses processos em massa é relativa e não pode ser equiparada à dos processos de contencioso eleitoral, nem à das intimações, nas suas duas modalidades, somos de opinião que a tramitação a seguir deverá ser a do contencioso pré-contratual, por serem mais longos e, nessa medida, os únicos que não limitam anormalmente o âmbito da instrução nem condicionam excessivamente apreciação dos factos e a realização das diligências de prova necessárias para o completo apuramento da verdade.[3]

4)   Julgado o processo, se o Tribunal entender que a mesma solução de direito pode ser aplicada aos processos suspensos deverá previamente notificar as partes desses processos que poderão adotar uma das seguintes atitudes, no prazo de 30 dias (art.48º nº5):

a. Desistência do seu processo - se a decisão do processo-modelo (ou processo selecionado) tiver sido de improcedência e ele se conformar com a decisão da sentença;

b. Requerer a extensão ao seu caso da decisão proferida para efeitos de execução - o que significa que aceita a aplicação ao seu caso da decisão proferida no processo selecionado;

c. Requerer a continuação do próprio processo - o que significa que não aceita a aplicação ao seu caso da decisão proferida no processo ou processos selecionados e prefere tentar a sua sorte no próprio processo que intentou.

d. Recorrer da sentença, se ela tiver sido proferida em primeira instância. Este recurso, se tiver êxito, só será aproveitado para quem o pediu, para o efeito de lhe permitir beneficiar de uma decisão de sentido diferente para o seu caso. Não é aproveitado pelas partes no processo selecionado, em relação às quais se formou caso julgado.

Em relação à alínea d) apresenta o Professor Wladimir mais uma crítica. Crítica que consiste no carácter incompreensível desta opção jurídico-processual, uma vez que “não se entende como é que alguém pode recorrer de uma decisão antes de esta lhe ser aplicável, mesmo que por extensão. Antes de o autor optar pela extensão ao seu processo da sentença proferida nos processos selecionados não há sentença no seu processo, pelo que não pode recorrer de sentença inexistente.”[4]

No âmbito da mesma discussão o Professor Vieira de Andrade fala numa situação especial de recurso posterior à formação do caso julgado.

Quanto aos efeitos da pronúncia proferida nos processos selecionados são complexos e merecem uma análise mesmo que breve, começando por fazer um breve comentário ao texto do nº 5 do artigo 48º, mais especificamente em relação aos 30 dias, uma vez que ficamos sem saber se o Tribunal terá de aguardar o decurso dos trinta dias para estender a decisão aos processos suspensos ou se tal extensão é automática.

Reza o nº 5 que, entendendo o Tribunal que a mesma solução plasmada na pronúncia pode ser aplicada aos processos suspensos, as partes são imediatamente notificadas da sentença para que o autor nesses processos opte por uma das quatro soluções acima transcritas. Na “visão” do Professor Wladimir Brito a lei quer conceder ao autor a oportunidade de tomar uma decisão e de a comunicar ao Tribunal antes de ser aplicada, por extensão, a pronúncia judicial já proferida nos processos selecionados.

Se seguirmos este entendimento (e mais uma vez na ótica do Professor Wladimir) torna-se contraditório admitir que, antes de cada um dos autores dos processos suspensos se pronunciarem sobre a opção que irão fazer, a pronúncia judicial transitada em julgado, ser estendida aos processos suspensos.       
      
Ora, não parece minimamente aceitável interpretar a norma do nº 5 no sentido de a decisão judicial transitada em julgado ser aplicável aos processos suspensos antes dos respetivos autores tomarem posição, optando por uma das quatro possibilidades que o mesmo artigo lhes confere. Não é aceitável aceitar que tal decisão se considere automaticamente aplicada aos processos suspensos, antes sequer da opção dos autores acima referida. “A não se entender assim, a opção concedida aos autores seria inútil, qualquer que ela fosse, no momento em que era comunicada ao Tribunal, dado que a decisão judicial já estaria estendida a esses processos.”[5]

Exatamente pelas razões indicadas pelo autor apresenta o mesmo a solução. Para este apenas lhe parece possível a interpretação da norma do nº 5 de que a extensão da decisão só será admissível após o decurso do prazo de trinta dias a que se refere o mesmo número do artigo e exclusivamente no caso em que o autor optar pelos efeitos da alínea b), isto é, requerer a extensão da sentença ao seu caso. “Nos demais casos, a opção do Autor não se coaduna com a extensão da sentença ou porque desiste do processo, deixando de haver, por expressa vontade do autor, processo e, consequentemente, pedido, ou porque requerer o prosseguimento do seu próprio processo significaria que rejeitava a extensão ao seu processo da decisão já transitada em julgado.”[6]

Noutro ponto do artigo (nº1 do artigo 48º) levanta-se uma outra questão que também deu azo à criação de algumas doutrinas relativas ao assunto que fazem todo o sentido.

A questão em causa é a limitação do artigo 48º nº1 referente à exigência de para haver a presença da figura da massificação processual terem os processos que correr num mesmo tribunal, isto é, tem que haver mais de vinte processos em cada tribunal que pretenda aplicar o regime da figura em causa.

Para o Professor Wladimir Brito apesar de a lei não dizer se as vinte e uma pendências têm de ser no mesmo ou em distintos Tribunais, como faz de forma clara e inequívoca a lei espanhola tudo indica que tais pendências têm de ocorrer no mesmo Tribunal ou Juízo.

O mesmo Professor diz, no entanto, que nada obsta que mesmo os processos que corressem os seus termos noutros Tribunais pudessem ser suspensos até à decisão final dos processos preferidos. A solução apresentada seria a de que a “lei ordenasse que, adotada a medida de agilização num dado Tribunal, tal medida fosse, de imediato e por ofício, comunicada a todos os Tribunais com a indicação da natureza da relação jurídica controvertida e dos fundamentos da decisão de agilização processual. Os demais Tribunais verificariam se tinham ou não processos com idêntico “objeto” e, em caso afirmativo, notificariam as partes, nos termos e para os efeitos do nº 2 do artigo 48º, ordenando-se, de seguida, a suspensão desses processos até à prolação da decisão nos processos selecionados, seguindo-se depois os termos dos números 5 e seguintes do artigo 48º.”[7]

Para defender esta sua posição o Professor diz que nem se deve dizer que esta posição é inaceitável por ser de difícil exequibilidade pois a tal objeção responderá que a realização prática desta doutrina é de longe mais simples do que o cumprimento do nº 1 e do nº 4 do artigo 73º sobre a declaração de ilegalidade de normas com força obrigatória geral e que, ainda assim, em processo civil é corrente a suspensão de processos requerida (a suspensão) por qualquer das partes ou até oficiosamente com fundamento na prejudicialidade.

Não nega porém que dever-se-á entender que a lei quis restringir a pendência mínima a um único Tribunal. 

Refere ainda que esta solução ou qualquer outra que permitisse ampliar a eficácia prática da disposição do artigo 48º teria a vantagem de consagrar uma prática judicial e jurisprudencial que “propicia el cumplimiento del principo de seguridad jurídica, evitación de sentencias contradictorias y coordinación y eficácia en la actuaction judicial”[8].

Fora de doutrina e no plano fáctico da história recente há que deixar nota de que na revisão do Código que chegou a estar projetada no decurso da legislatura precedente, havia a intenção de alterar este aspeto do regime, atribuindo ao Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, nos casos em que os processos em causa envolvessem mais do que um tribunal, a competência que o 48º/1 confere ao presidente do tribunal.

A meu ver (tal como na “visão” do Professor Wladimir) seria uma alteração a todos os níveis de saudar.

Para finalizar, farei ainda duas breves notas.

Uma primeira (breve) referência à norma remissiva presente no artigo 49º (também ele do CPTA) que manda aplicar às sentenças proferidas no Título III o disposto nos artigos 44º e 45º do CPTA. Esta disposição permite assim ao Tribunal fixar oficiosamente prazos para o cumprimento de deveres impostos à Administração nas sentenças, bem como prorrogar esses prazos e impor sanções pecuniárias compulsórias. Pode, no entanto, o Tribunal convidar as partes para acordarem o montante da indemnização que deve ser dada pela Administração ao Autor, sendo que na falta de acordo o Tribunal fixará pelo seu prudente arbítrio o montante dessa indemnização.

Breve nota merece também o artigo 161º do CPTA e a extensão dos efeitos da sentença. De forma a prevenir a interposição de processos em massa para a tutela dos mesmos interesses jurídicos, sempre que esteja em causa a mesma relação jurídica e se verifiquem um conjunto de pressupostos elencados no artigo 161º, é possível estender os efeitos de uma sentença transitada em julgado a outras pessoas que se integrem na mesma situação jurídica.



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Bibliografia:

ALMEIDA, Mário Aroso de, “Manual de Processo Administrativo”, 2013, Almedina, pp. 399 a 402

ANDRADE, José Carlos Vieira de, “A Justiça Administrativa (Lições)”, 2012, 12ª Edição, Almedina, pp. 299 e 300

BRITO, Wladimir, “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004, Associação de Estudantes de Direito da Universidade do Minho, pp. 171 a 186

FARINHO, Domingos Soares, “Os Processos em Massa no Novo Contencioso Administrativo”, Relatório do Seminário de Direito Administrativo do Curso de Mestrado 2002/2003

SILVA, Vasco Pereira da, “O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise”, 2009, 2ª Edição, Almedina, pp. 284 e 285

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Rodrigo Manuel Figueiredo Rocha  nº 18386  Subturma 7





Nota: Este artigo foi escrito segundo o Novo Acordo Ortográfico 



[1] Posição assumida também pelo Professor Mário Aroso de Almeida em “Manual de Processo Administrativo”, 2013 pp. 401; e pelo Professor Wladimir Brito em “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004 pp. 179.
[2] Excerto retirado de “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004, do Professor Wladimir Brito, pp. 179 a 180
[3] Citação retirada de “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004, do Professor Wladimir Brito, pp. 180

[4] Citação retirada de “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004, do Professor Wladimir Brito, pp. 185
[5] [6] Citações retiradas de “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004, do Professor Wladimir Brito, pp. 181 a 183
[7]Citação retirada de “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004, do Professor Wladimir Brito, pp. 176 a 178                                                                                                                                                           
[8] José Maria Álvarez-Cienfuegos, Juan José González Rivas e Gloria Sancho Mayo apud Wladimir Brito em “Direito Processual Administrativo (Lições)”, 2004.

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