O
processo cautelar destina-se a obter o decretamento de uma providência
cautelar, antecipatória ou conservatória, que se mostre adequada a assegurar a
utilidade da sentença a proferir no processo principal.
Acontece
porém que, por vezes, a mera tutela cautelar se apresenta como desadequada, não
só no sentido de que pode não tutelar convenientemente os direitos e interesses
que o particular visa ver assegurados, como também no sentido do seu decretamento
poder vir a esvaziar a utilidade da decisão a proferir na causa principal. É
que as providências cautelares podem acabar por ter efeitos irreversíveis (efeito
evidente nas providências antecipatórias). Utilizando o exemplo da
manifestação, dado pelo Professor Mário Aroso de Almeida, se a realização de
uma manifestação for autorizada a título cautelar, isso faria com que, uma vez
realizada a manifestação, o processo principal se tornasse imediatamente
inútil. Há portanto situações em que é necessário obter, em tempo útil e com
carácter de urgência, uma decisão definitiva sobre a questão de fundo, sob pena
de haver denegação da justiça.
É
neste âmbito que assume relevância o Art. 121º do Código de Procedimento dos
Tribunais Administrativos (C.P.T.A), este preceito, introduzido pela reforma,
trouxe para o processo administrativo a possibilidade de convolação do processo
cautelar em processo principal, permitindo ao juiz uma antecipação processual
do juízo de fundo, caso haja manifesta urgência na resolução definitiva do
caso.[1]
Apesar
de, para adopção deste mecanismo, ser necessário estarem preenchidas condições
legais bem rigorosas e de ser possível a impugnação da decisão de antecipação,
é necessário haver uma interpretação rigorosa destes pressupostos e um grande
cuidado por parte do juiz, que só em casos excepcionais deve decidir-se pela
convolação. Isto porque o conhecimento do juiz nestes processos é, por
definição, sumário, podendo inviabilizar a ponderação criteriosa do tribunal.[2]
Cabe
então ao tribunal moderar a intenção das partes de ver decidido nos processos
cautelares questões que merecem ser discutidas nos processos principais.
O
STA tem vindo a reconhecer que, sempre que possível, se deve procurar o
julgamento do mérito da acção, em honra ao princípio pro accione, no sentido de favorecer todas as hipóteses legítimas
de exercício do Direito do particular, só deste modo se conseguindo uma tutela
efectiva das posições dos particulares.
Podemos
assim afirmar que o mecanismo previsto no art.121º é inspirado no “princípio da
tutela jurisdicional efectiva”, encontrando-se do mesmo modo ligado ao
princípio pro accione. É este princípio (no seu sentido amplo) que justifica a
consagração da possibilidade de uma decisão “precoce” da causa necessitada de
tutela cautelar (prevista no art. 121.º) e que relega para segundo plano o princípio
da tipicidade da forma e dos trâmites processuais.
Da
leitura do art. 121.º do CPTA é possível individualizar dois requisitos
necessários à antecipação da decisão do mérito da causa no processo cautelar.
Primeiramente
é necessário que a natureza das questões colocadas e a gravidade dos interesses
em presença permitam concluir que existe uma “manifesta urgência na resolução
definitiva do caso” que “não se compadece com a adopção de uma simples
providência cautelar”. Trata-se de um juízo substantivo sobre a manifesta
urgência na resolução definitiva do caso.
Sobre
esta urgência especificada do art.121º, a jurisprudência fala numa “urgência
qualificada”, pelo facto, de se tratar de uma situação na qual se revele
insuficiente o decretamento de uma providência cautelar[3].
Como
segundo requisito, este de natureza processual, temos a necessidade do tribunal
se sentir em condições de decidir a questão de fundo, por constarem do processo
todos os elementos necessários para o efeito (ampla defesa, oportunidade de
contraditório). É necessário que se reúnam todas as condições processuais que
permitam dar resposta à situação. Tal obrigação “significa que o tribunal não
deve antecipar a decisão sobre o mérito da causa, mas decidir a providência
cautelar, sempre que seja possível admitir que poderão ser trazidos ao processo
principal elementos relevantes para a decisão de fundo”[4].
Passamos
a fazer uma breve análise de cada um dos pressupostos do art. 121.º do CPTA.
I-
Natureza das questões e a gravidade
dos interesses envolvidos: na
doutrina e na jurisprudência, há uma tendência para reduzir o campo de
aplicação do instrumento previsto no art.121.º, estreitando-se a possibilidade
da antecipação da decisão de mérito. A referência a “gravidade dos interesses
envolvidos” e a “natureza das questões”, parece ter por base um critério de
justiça material, que tem originado interpretações restritivas do preceito.
Parte da doutrina restringe o campo de aplicação a situações em que estão em
causa Direitos de natureza análoga aos Direitos, Liberdades e Garantias. Estes Direitos, não cabendo dentro do
âmbito de aplicação do art. 109.º do CPTA, podem ser tutelados através do art. 121.º[5].
II-
Requisitos de natureza processual
A) Manifesta desadequação da mera
tutela cautelar: Este requisito demonstra a natureza residual da decisão de
antecipação. Ainda que determinada situação possa ser lesiva, se esta puder ser
acautelada e tutelada provisoriamente, não deve ser antecipada a decisão final
da causa.
Assim, a
necessidade deste meio não se limita ao periculum
in mora, sendo que o critério para a aferir da sua necessidade, se prende
com a carência de uma tutela definitiva e urgente. Não se fala em
“impossibilidade” mas em “desadequação”, o critério parece ser menos rigoroso. A
expressão ”não se compadecer com
decretamento de uma simples providência cautelar”, deve-se entender como
uma situação de insuficiência da tutela cautelar e não como impossibilidade.[6]
Nestes
casos de desadequação, o juiz não se pode limitar a decretar uma medida
provisória, que, em rigor, tem efeitos definitivos, esvaziando a utilidade da
decisão da causa principal.
Em
situações em que esteja em causa questões pessoais ou profissionais dos
requerentes, em que há uma desejável estabilização das situações das vidas em litígio,
são casos em que antecipar a decisão da causa será a actuação que melhor
garante a tutela jurisdicional efectiva.
É a
necessidade urgente de uma decisão de fundo que torna a tutela cautelar
insuficiente ou inadequada.
B) Presença de todos os elementos
necessários: “trata-se de exigência, cuidado e prudência, impostas pelo princípio
do dispositivo e pelo princípio do processo equitativo”[7].
Esta
exigência refere-se ao problema das consequências da antecipação da decisão de
mérito, enquanto decisão com força de caso julgado. A antecipação da decisão
tem de ser formada de maneira que não ponha em causa qualquer princípio
processual capital.
Quando
esteja pendente acção principal (casos em que é mais fácil verificar-se o
preenchimento deste pressuposto), a antecipação do juízo de mérito da causa
principal, irá determinar a inutilidade superveniente dessa acção, prejudicando
as suas fases posteriores. As fases passam a resumir-se à audição das partes e
á emissão de um juízo sobre a causa principal. Porque não pode haver uma diminuição
das garantias de defesa, é necessário que o juiz disponha de todos os elementos
necessários para proferir a decisão, quando entende usar deste mecanismo previsto
no art. 121º. Assim, não pode haver matéria de facto controvertida relevante,
nem necessidade de realização de quaisquer outras diligências de prova[8].
A prova
produzida deve ser capaz de formar uma convicção bastante para fundar a decisão
definitiva.
Deve ainda
ser dada à parte, como consequência do princípio do contraditório, um prazo de
10 dias para se pronunciar sobre a decisão de antecipação do conhecimento do
mérito da causa.
Importa
ainda referir que a possibilidade de antecipar a decisão da causa principal não
deve ser apenas “usada” quando o juízo de prognose sobre tal decisão for
positivo, ou seja, for no sentido da procedência. Isto porque como refere
alguma jurisprudência, nada na letra do art.121º nos permite concluir por essa
exigência de juízo de prognose positivo (a antecipação tanto pode resultar da
procedência como da improcedência).
Verificados
todos os requisitos cumulativos do artigo que permitem a antecipação, “não
faria sentido que [o juiz] ficasse inibido da possibilidade de o fazer pelo
simples facto de perspectivar uma improcedência da causa principal,
alimentando, assim, e sem razões válidas, uma lide inglória para o demandante”[9].
Concluindo,
a convolação constitui um meio que permite assegurar a efectivação do princípio
da tutela jurisdicional efectiva em todos aqueles casos em que, muito embora se
verifique urgência na resolução definitiva do caso, qualquer medida cautelar a
adoptar não é apta a oferecer uma resposta satisfatória.
Como
refere Vieira de Andrade, a possibilidade de antecipação da decisão de fundo
através da convolação, constitui uma abertura do sistema para a criação ad hoc
de novos processos urgentes, sempre que tal seja necessário e possível[10].
No
entanto, este mecanismo, embora permita uma rápida decisão, está sujeito a
requisitos apertados, que se justificam como forma de impedir a sua aplicação
irreflectida e precipitada. Neste sentido se torna necessário fazer uma
interpretação restritiva dos pressupostos, como forma de vedar as
possibilidades de tutela antecipatória de mérito e de limitar as situações de
urgência processual, sob pena de “sendo tudo urgente, nada ser urgente”.
O art. 121.º
constitui uma válvula de escape para situações não previstas, em que haja uma
efectiva urgência na decisão. A ela se pode recorrer não apenas em situações
excepcionais, mas sempre que o juiz entenda que essa é a forma que melhor
assegura a tutela jurisdicional efectiva na jurisdição administrativa.
Maria
Isabel Campos Costa, nº 20417
Bibliografia
Andrade,
José Carlos Vieira de, Almedina, 10º edição, Novembro de 2009 – “A justiça
Administrativa”
Andrade,
José Carlos Vieira de, “Tutela Cautelar” in Cadernos de Justiça Administrativa,
nº34 Julho/Agosto 2002
Almeida,
Mário Aroso de, Almedina, Outubro de 2010 – “Manual de Processo Administrativo”
Gouveia,
Ana, FDUL, Lisboa 2002 – “A tutela Cautelar no Contencioso Administrativo”
Fonsesa,
Isabel Celeste da, Contencioso Administrativo e autárquico: protecção de
Direitos fundamentais - Direito Regional e Local, nº01, Janeiro/Março 2008;
Neto, Dora
Lucas, “ Notas sobre a antecipação do juízo sobre a causa principal (um comentário
ao art.121º do CPTA”, Maio de 2009 - Revista de Direito Publico e Regulação
Acórdão do
TCA Norte da 1º secção de 26-07-2007, proc. 03160/06.3BEPRT
[1] Cf. José Carlos Vieira de Andrade,
“Justiça Administrativa”, 10.ª ed., pp. 370 e ss.
[2] Cf. José Carlos Vieira de Andrade, ”Tutela
Cautelar”, Cadernos de Justiça
Administrativa, n.º 34, Julho/Agosto de 2002.
[3] Cf. Isabel Celeste Fonseca,
“Contencioso administrativo autárquico: a protecção de direitos fundamentais”, Direito Regional e Local, n.º 01,
Janeiro/Março de 2008; e ainda o Ac. do TCA Norte, proc. 03160/06.3BEPRT, de
26-07-2007.
[4] Ac. do TCA Norte, proc.
03160/06.3BEPRT de 26-07-2007
[5] TCA Norte, no processo já indicado,
parece seguir esta interpretação (…)”os interesses relevantes envolvidos, para
efeitos desta aferição de manifesta urgência, não terão a ver, pelo menos
directamente, com a protecção de direitos, liberdades e garantias, uma vez que
a intimação urgente prevista no art. 109.º a 111.º do CPTA, já permitirá uma
protecção adequada dos mesmos, mas antes com a protecção de outros direitos e
valores importantes, designadamente os valores constitucionais referidos no
art.9º nº2 do CPTA.”
[6] Neste sentido, Dora Lucas Neto, “Notas
sobre a antecipação do juízo sobre a causa principal (um comentário ao art.121º
do CPTA)”, Revista de Direito Público e
Regulação.
[7] Ac. do TCA Norte, proc.
03160/06.3BEPRT de 26-07-2007
[9] Ac. do TCA Norte, proc.
03160/06.3BEPRT de 26-07-2007.